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VIDA POR VIR

Texto lido pelo professor Gustavo Naves Franco na abertura do Colóquio de 10 anos da Escola de Letras, em 02 de julho de 2020, dia que coincidiu com o encerramento de sua gestão na Direção da Escola.

Nenhum gesto criativo se encerra de maneira definitiva quando recebe o último traço. Toda obra de arte requer leitores, espectadores, intérpretes e críticos para manter-se viva. Algo semelhante pode ser dito da criação de um curso universitário: ao fim do processo de elaboração de seu projeto e de seu currículo, entram em cena os professores, alunos e técnicos encarregados de aplicar suas ideias e executá-las na prática. No entanto, nesse processo sempre dinâmico, as formulações do projeto fundador nunca deixam de ter enorme importância, e não apenas por seus conteúdos longamente pensados e discutidos, mas também e sobretudo pelo espírito criativo que o motivou em primeiro lugar. É para recuperar um pouco desse espírito que receberemos hoje as professoras Maria Helena Werneck, Flora Süssekind, Evelyn Orrico e José da Costa, responsáveis pela criação e implementação dos cursos de Letras da Unirio, há 10 anos. Gostaria então, antes de tudo, de aproveitar a oportunidade para registrar um agradecimento pelo que fizeram por nós, professores, alunos e técnicos da escola, ao criar o espaço acadêmico onde estamos e vivemos, mesmo agora, remotamente, como se tivessem criado a partitura ou o libreto ou o texto do drama que interpretamos quase sempre com muito gosto e alegria, mesmo quando nos falta a experiência ou o talento.

Por outro lado, sabemos como o entusiasmo inicial com uma tarefa artística e política pode arrefecer diante das contrariedades que vão se revelando no caminho. É um pouco como diz o dramaturgo David Mamet: no fim do primeiro ato, Hamlet parece revigorado e disposto a consertar um mundo desvirtuado pelo assassinato de seu pai; mal começa o segundo, e ele precisa lidar com dois chatos impertinentes chamados Rosencratz e Guildenstern. De modo semelhante, a criação e implementação de cursos universitários também envolve uma infinita papelada cujos trâmites são o contrário de tudo o que existe de heroico e artístico nesse mundo. Mas o processo criativo presume esse momento também, e depende de pessoas com a capacidade de vivê-lo e superá-lo para que seus frutos possam brotar. Por isso, gostaria de registrar um agradecimento adicional à professora Maria Helena Werneck, diretora da Escola de Letras entre 2010 e 2016, que se encarregou de várias de impertinências e chatices nesse período, conduzindo um corpo docente animado porém imaturo, que mal sabia o que era um número Siape. Nesse sentido, cabe um agradecimento também ao Técnico em Assuntos Educacionais William Garcia, que já estava na escola quando eu cheguei, há quase 10 anos, e me ensinou o que é um número Siape.

Porém, contudo, todavia, entretanto, hoje não parecemos estar nem no final do primeiro ato, nem no começo do segundo. Talvez fosse apropriado dizer que chegou a hora de enfrentar o déspota mentiroso e usurpador em um ato final, se ainda conseguíssemos perceber qualquer tipo de lógica no roteiro dessa história. Mas não percebemos. Sentimos estar em meio a uma crise pós-pós-dramática que é também uma ameaça de regresso a um mundo pré-hamletiano com reverberações de pragas antediluvianas que anunciam catástrofes apocalípticas. E isso foi antes da pandemia. Agora, nós professores e alunos de Letras temos que atravessar tudo isso com os óculos embaçados por causas das máscaras de proteção individual. De modo que orientações, conselhos e conversas sobre o futuro das humanidades e dos cursos de Letras serão mais do que nunca bem-vindos, e agradeço também à professora Beatriz Resende por ter aceitado o convite para tratar do assunto conosco, ampliando nossas perspectivas momentaneamente tão limitadas.

Mas sabemos também que, enfim, todo ato verdadeiramente criativo implica a necessidade de resistência. Aquilo que, em um determinado instante, surge como um impulso de renovação, pode implicar a necessidade de preservação da obra criada em outro, ou seja, o cuidado com o mundo de que falava Hannah Arendt, o cuidado com aquilo que existe entre nós. E, cá entre nós, creio que a Escola de Letras da Unirio já se consolidou nessa última década como um espaço de criação e liberdade acadêmica que é parte importante do mundo em que vivemos, além de ser um verdadeiro mundo à parte para muita gente que por lá passou. Defender esse espaço é algo que jamais poderia ser feito através de movimentos meramente reativos, e para preservá-lo é preciso que ele se mantenha vivo, em quaisquer circunstâncias. Por isso, hoje, ao trazer um pouco de sua história, o que trazemos é também muito da vitalidade que serviu de impulso para seu surgimento, e que deve continuar sendo uma infinita fonte de inspiração e motivação para todos nós. Sejam bem-vindos ao colóquio de comemoração dos nossos 10 anos. Há muita vida por vir, isso é só o começo. Obrigado.

 

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